Hoje volto aqui, é
a segunda vez, e essa é pra tirar os pontos, e repare que eu disse tirar e não
entregar. Tem gente que acha que tirar os pontos é a parte fácil porque,
afinal, se você andou até aqui pra tirar os pontos é porque não morreu nem nada
do tipo, mas quem diz isso nunca teve ter passado pela situação de ter um
sujeito com uma espécie de pinça prateada puxando a linha da sua testa como se
fosse a barra de uma calça. Enfim. Não vou choramingar. Aqui na recepção a TV
está ligada, e vejo que o Boni é o novo ministro da cultura. Parece um pesadelo
estereotipado de esquerda, ver a maior
emissora de televisão do País tomar o ministério da cultura. Mas esse é só o
começo. E parece que esse cara tem um filho que chama Boninho. Acho que cuida
do BBB. Boni e Boninho. Fiquei na dúvida se colocava essas referências aqui,
porque escritor sempre fica meio assim de usar esse tipo de referência, que
provavelmente vai deixar a porra do texto datado. Mas se deu vontade, fazer o quê? Não usá-las
na esperança de ser lido daqui a milhares de anos sem parecer datado? Haha.
Deixa pra lá. Viver é mesmo um ato de fé. Enfim, o fato é que estou aqui
esperando ser chamado, esperando a moça do balcão dizer sem maiores entusiasmos,
Sr. Eduardo, a segunda porta à direita, no final do corredor. Porra, tinha que
ser à direita, eu penso. Se você me perguntar, os pontos que vim tirar eu tomei
num acidente de bicicleta. Um cruzamento. Uma encruzilhada. Eu, a bicicleta, o cabelo
bem solto no vento, noite, e o chão molhado da chuva que tinha refrescado um
pouco esse arroto insano que é a cidade. Ele, um automóvel rápido demais, que
parou próximo demais. Era um automóvel ou tinha um ele ali? Eu, que tento me desviar,
mesmo enfiado até a testa nessa má combinação. Derrapo, caio de esquerda e pof,
bato a cabeça no chão. Eu, que ouço o barulho seco da pancada, misturado ao de
algo que se quebra, talvez um vidro ou sabe-se lá o quê; tomara que não perca
minhas memórias, é o que tenho tempo de pensar. Ele, um automóvel, que se vai.
Eu, que enxugo o sangue da testa na camiseta branca, tudo vermelho, empurro a
bicicleta até em casa e vou parar no hospital.
Ainda bem que as filas não frequentam os
hospitais de madrugada. Pelo menos por enquanto. E então a história
começa. Estou ali, o sujeito de avental branco me manda deitar na mesa, acho
que é o Doutor, tem um outro na sala também, de roupa verde, esse só pode ser assistente,
Doutor não deve usar verde, aí, eu te falo, o sujeito tava com uma agulha na
minha testa, é anestesia, ele diz e, depois de saber que foi de bicicleta, me
pergunta se eu estava naquelas ciclo faixa do Haddad, não pode ser que eu
esteja ao mesmo tempo levando uma agulhada na testa e ouvindo uma piadinha reaça,
eu penso, deve ser a pancada, mas ele repete, tava nas ciclo faixa do Haddad? e
olha para o assistente de verde, que dá uma risadinha, e então é isso mesmo,
estava acontecendo mesmo, aí eu penso em mandar ele pra puta que o pariu, já to
todo fodido mesmo, mas ele vai costurar a minha testa em um minuto, então não
parece uma boa ideia, e eu digo algo como lá não tinha uma ciclo faixa, mas
talvez fosse bom se tivesse, eu nem sei, porra, ia ser foda se ele falasse de
algum cubano do mais médicos,
Sr. Eduardo, a segunda porta à direita, no final do corredor,
finalmente a recepcionista me chama, e eu vou meio nervoso, acho que fico um
pouco estranho em lugares onde deixam a TV ligada
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