terça-feira, setembro 13, 2016

Flúor


Senti os pedaços duros de alguma coisa em minha boca, e no começo ficava passando a língua e pegando aquilo na minha mão, umas coisas brancas, a gente entende quase nada do que nos acontece, foi só depois que entendi, e lembrei do Betinho, meu amigo que conheço desde muito, o primeiro amigo do colégio, acho engraçada essa palavra, colégio, vou envelhecendo e gostando de palavras datadas, e o fato é que o Betinho vive com esse pavor dos dentes dele caírem, e vários efetivamente caíram, uma vez a gente estava ali conversando de boas e ele começou a ficar bem agitado, e parecia que estava mastigando alguma coisa, mas estávamos comendo nada, era só cerveja, e ele ali meio em choque, colocando a mão na boca, remexendo e tirando umas coisas brancas, meio amareladas, o Betinho é do tipo que vai ficando pálido quando está com medo de alguma coisa que ele julga séria, e eu acho que há um tempo a coisa que ele julga séria é esse medo de morrer, ele fala bastante sobre isso e tentou tudo que é coisa, Igrejas, Budismo, Umbanda, agora anda bem enfiado nessas transas de Candomblé, eu sei lá, é sempre assim, um salve-se quem puder, imagino que quando a vida apertar mesmo eu também vou ser um desses que começa a acreditar, e vai ficando com esses papos esotéricos como se alguma força me permitisse enxergar o fundo, eu nem sei, o fato é que agora ela vem com esses olhos claros, a Ana, eu nunca entendi como alguém podia ter olhos como aqueles, de uma cor esverdeada e amarelada ao mesmo tempo, como se feitos daquela parte em volta da semente do abacate, eu não entendo esses olhos, mas enfim, depois de colocar as luvas, me mandar abrir a boca e examinar tudo, a Ana, minha dentista, me vem bem tranquila e solta a notícia, é canal mesmo, fodeu, eu penso, e fecho a cara, e torço para encontrar ninguém depois de sair desse consultório, porque quando você está cagado dificilmente não vai cagando tudo em volta e formando um rio de merda, como o que atravessa essa cidade ao meio, um grande monumento gritando que só a coprofagia nos une, mas enfim, tenho que voltar para o trabalho, o horário, os problemas, hoje está sendo um daqueles dias, e de novo penso no Betinho, se por um lado ele é paranoico, por outro deve ser ótimo saber o motivo, e ele sabe muito bem porque os dentes dele caem. Agora eu, eu não sei direito, e tenho que ficar ouvindo coisas como as que a Ana fala, que deve ser açúcar, talvez o cafezinho no trabalho, só que meu café sempre foi amargo e puro, como o que sinto por ela, então calo, e sorrio meu sorriso que muita gente acha bonito sem enxergar que sou todo fodido e infiltrado, careado e com a polpa morta, talvez ninguém tenha a luz dos dentistas, e sei que tem alguma coisa muito errada comigo, e não estou  falando de canal, e o Betinho, o Betinho também tem muita coisa errada, se fodeu muito, o playboy que todo mundo quer que se foda porque, se sempre teve tudo e mesmo assim se fodeu, então foi porque quis, e por um tempo ele foi mesmo marginal,  mas sem nunca ser herói, as paredes também mentem, mas pelo menos ele acha que sabe a causa, teve o pó, o crack, esse monte de coisa que dá prazer e que serve também para ser culpado de quase tudo, é muito bom ter algo para apontar o dedo, sei lá, no começo, no meu primeiro dente, talvez até na trincada do segundo, eu fiquei meio desesperado, e respirei fundo, colado na noção de que dá para fazer alguma coisa, de que é só ter mais cuidado ou atenção, mas agora, bem, agora é diferente, a verdade é que agora estou puto porque vai doer, e terei que voltar naquele consultório não sei quantas vezes, e o preço será absurdo, e o dente mesmo eu quero é que se foda, porque chega esse tempo em que se preocupar com esse tipo de integridade é querer tapar a enchente com o dedo,  e tem essa dor insuportável,  pego um alicate prateado da gaveta, bato para sentir o dente fodido e sai um barulho oco, melhor seria um pequeno martelo,  vou acabar com essa merda agora, virar o homem de ação que Ana sempre quis, eu só queria alguém para limpar esse sangue todo, e tem o Betinho, nunca entendi direito porque ele se preocupa tanto com os dele, ele, que teve aquelas convulsões de bater a cabeça no chão, que vomitou na sala da mãe, que deu a bunda pelo pó e que agora está ali, coberto de guias e espreitado pela recaída. O lance dele é mesmo os dentes. Engraçado. Falando agora, tenho a impressão que, não fosse isso, Betinho engoliria todo esse drama como quem engole um raio de sol

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