Eu trabalhava lavando pratos. Eram sete, oito horas seguidas. Em pé, molhado.
As mãos sempre esfregando, limpando. Saia do trabalho, pegava o primeiro ônibus
e descia na estação para pegar o segundo. Aquele que levava à casa.
Não.
Descia na estação para ver ela. Muito mais do que para pegar o segundo
ônibus, eu descia para ver ela.
Ela me esperava ali, porque de lá íamos juntos. Era metade do caminho. A
primeira metade era eu. Eu que saia do trabalho e entrava no primeiro ônibus.
Eu que chegava na estação. Eu que subia as escadas rolantes e andava até
próximo aos bancos, que era o lugar onde ela sempre estava.
Então eu olhava.
Eu amava ela, ou o modo como a luz, entrando pela janela alta da
estação, incidia nela?
Eu amava ela. Porque era ela que me fazia sensível à luz.
A segunda metade era fácil. Porque a segunda metade era nós. Tanto
fazia se era o segundo ônibus. Tanto fazia se era para casa.
Pensando agora, não sei como tudo se quebrou. Como se fosse um dos
pratos escorregando das minhas mãos ensaboadas e partindo no chão. Pancada.
Barulho. E cacos. Tentar olhar os cacos e enxergar o prato, seria tão tolo
quanto tentar olhar para ela e nos enxergar. O prato virou memória. Nós viramos
memória.
Talvez não haja tanto mistério. Talvez os elementos estivessem ali, esperando
a combinação derradeira, como pratos/chão/minhas mãos ensaboadas. Ou fotógrafo-frustrado-lavador
de pratos/arquiteta disposta/arquiteto bem sucedido.
Não sei se ela me deixou por ele, por ela ou por mim. Mas é certo que
houve quebra. Pancada. E barulho.
Lembro-me disso tudo. Tremi. O afogamento. O vômito. Os gritos ocos, os
socos no chão e nas paredes, as horas e eu ali imóvel como um saco. O planos de
matar com as minhas mãos e os apertões fundos na própria carne. A vontade
de cacos.
Depois veio a distância. E o tempo. E muito se borrou na memória.
Depois as memórias foram voltando e se reerguendo de modo muito
próprio, desrespeitando cronologia e razão.
E voltei a respirar. E a amar algumas dessas memórias, sem me ressentir
por isso. Mas não foi suficiente. Porque a elas não bastou me testemunharem que
foi possível. Elas me sussurravam, sadicamente, que, se foi possível, é
possível.
Então dou o segundo passo. Escuto o sussurro. E assim, sem querer, me
vingo dela. Porque quando penso que é possível, não penso que é possível com
ela. Só que é possível. Vingança mais eficaz do que as que fantasiei nos
momentos de violência. Agulhas debaixo de unhas. Alfinetes na genitália. Não
adiantava. Se dói no torturado, dói no torturador. O fotógrafo lavador de pratos
traído pela arquiteta. Que tomou comprimidos amarelos, e brancos, e sem cor, para
matar a vontade de matar. E comprimidos grandes para suportar a dor das
torturas que de fato perpetrou. Eu bati. Na cara, nas costas, nas pernas. E por
pouco a mão não foi fechada. Eu apertei o pescoço e a levantei. Um frango para
o abate. Olha a merda que VOCÊ foi fazer,
sua puta. Doía em mim, ia doer nela. Não adiantava. Se dói no torturado,
dói no torturador. Círculo infinito. Infernal. Sempre mais dor. E exaurimento.
E nunca se apagava a primeira quebra. O estrondo. Quando eu soube dele. E a roda voltava sempre a girar.
Não.
Não deve ser mais sobre vingança. Não deve ser mais sobre ela. Não é
mais sobre isso. Deve ser sobre a possibilidade. Sobre permitir mais uma vez a
possibilidade de se dar o alinhamento, a combinação improvável e quase
impossível. Aquela quando alguém me toca no fundo tão fundo que parece o avesso,
e me deixa tocar onde minhas mãos carcomidas pelo sabão mal
podem alcançar.
Desligo o gravador. Olho o quarto vazio. Respiro fundo. Perco o
receio. Crio coragem
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