sexta-feira, junho 30, 2017

kayaköy



Fora do quarto de hotel o sol queima a pele, a cabeça inchada, pronta para explodir. Ele anda pela cidade, simplesmente anda, desviando do trânsito, gente, pega ruas escondidas, de nomes impronunciáveis, a língua como barreira, ao invés de algo que roça, ele segue o corpo, sem compromisso. Não sabe onde está

Acontece que, mesmo aqui, você se sentia assim, foi o que ela disse na última vez em que se falaram no telefone, uma chamada baixa e abafada 

Antes de partir, às vezes esquecia a rua daquele restaurante, ou da casa onde morava havia quase um ano, e às vezes passava o dia calado, e quando pensava em falar a voz não saia, não dava conta do que sempre quis tocar. O outro. Ele tentava disfarçar. Queria parecer normal. E sorria. Se sorrisse, talvez tivesse alguma chance. Mas em algum momento olhava para o nada, e quem falava com ele às vezes olhava nessa mesma direção, buscando o que ele via, e então o olhava de volta, sem compreender

 Enfim, ele está aqui, suado, andando há quase uma hora. Olha crianças jogando bola. E de repente ouve a buzina, a freada, ele se assusta e leva os braços à frente, um carro, um carro freia muito próximo e quase o atropela.  O motorista não para e não grita xingamentos. Ele observa o carro ir. Olha as crianças, que o observam por um longo minuto, até uma delas tomar a bola das mãos da outra e o jogo recomeçar. Então ele se movimenta. Se esforça para controlar as pernas, que sente amputadas, e pega uma rua vazia. Chega a um caminho de terra. Há algumas casas de pedra. Elas parecem abandonadas. Uma cidade fantasma. Ele entra


Caminha pelas casas, algumas sem teto, a maioria sem portas, todas feitas de pedra, e então imagina que naquela casa ali provavelmente morava a menina mais bonita do vilarejo, cabelos escuros e pele marrom, e quem sabe se eles não se encontravam no canto daquele juro ali, que ele dizia, e ela ouvia, e ria para ele enquanto se sentava no muro e levantava a saia

Ele passa pela casa que poderia ter sido a de seus pais, onde passou muito tempo na sala brincando no chão, e depois encontra a casa onde entra, abaixa as calças, e começa a se tocar até expelir tudo no chão, na terra, e levanta os braços, mirando o céu, refundando a cidade sob sua porra, e então vê um casal de borboletas brancas, e agora, além do barulho de sua respiração e de seus passos, ouve o barulho de pássaros, e segue andando pela ruela até chegar à igreja principal. O portão está fechado, ele quer entrar, mas começa a recuar, recuar para que, quem precisa obedecer até as ruínas, e então ele procura pedras para empilhar e pula o muro

Dentro da Igreja, passa a mão pelas paredes descascadas e começa a ouvir vozes. Procura, procura as vozes, não vê ninguém, sai da igreja, e continua caminhando, em direção à casa, no alto da montanha, sua pela testa, a luz forte, clara, quase branca, mais vozes, outros passos, ele olha em volta, nada, nada, e mais barulho, e então, e  então eles começam a aparecer

Alguns tem roupas coloridas, outros tem roupas cinza, bege, olhos grandes, olhos puxados, falam línguas diferentes, trazem câmeras pretas e prateadas penduradas nos pescoços, e ele se aproxima, solene, e bate a mão no peito, e o indicador para cima, El duardo, ele diz, com firmeza, aos que chegam, e eles respondem de diferentes modos, alguns acenam com as mãos, outros seguem em outra direção, e ele vai caminhando cada vez mais firme

A cidade se enche cada vez mais, um homem toca a barba do outro, olha o pelo levantado e sorri sem saber que é o detalhe que o fará se apaixonar. Uma senhora toca as pedras do chão enquanto tenta se levantar, e é tocada por alguém que lhe estende o braço, e o olhar de uma moça toca o de um rapaz, dizendo não a seu apetite e ao convite para a pele. As horas passam e ele agradece aos ventos pela prosperidade, e já sabe onde será fundada sua casa, e vai começar a arrumação, fincar os dedos na terra, até que algo estranho começa a acontecer

Eles começam a desaparecer

Ele se desespera, procura ao redor, tenta falar, os manda ficar, se exalta, fala alto, os proíbe de sair, mas eles não se importam, sequer parecem entender, alguns dão risada, outros fecham a cara, mas todos seguem. Ele tenta impedir, mas é empurrado. Eles gritam coisas que ele não consegue

decifrar

 e o sol se põe, e ele coça os olhos e sabe que precisa ir, sair dali, e começa a caminhar, procurar a saída, a noite está escura e ele anda, anda, e sai em becos e mais becos, e ruelas, e novas casas, a cidade o começa a engolir, e ele se desespera, não tem comida, nem água, e então senta-se debaixo de uma árvore e silencia

O silêncio

Ele tenta, vira a cabeça, mas não ouve, não ouve nada. Nenhum barulho. Já não há pássaros. Nem gente. Nem borboletas brancas, e os fantasmas são mais assustadores quando estão calados. Num ímpeto ele levanta, caminha, caminha mais, procura, entra numa ruela, em outra, que dá em outra e, mais outra, e então dá um berro e não aguenta mais. Ele para. Uma baba lhe sai pela boca. Até que ele apoia a cabeça em uma das mãos e ouve. Ouve moscas. Ele ouve apenas o som

de moscas


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