terça-feira, julho 05, 2016

Diálogo com um gravador


Eu trabalhava lavando pratos. Eram sete, oito horas seguidas. Em pé, molhado. As mãos sempre esfregando, limpando. Saia do trabalho, pegava o primeiro ônibus e descia na estação para pegar o segundo. Aquele que levava à casa.
Não.
Descia na estação para ver ela. Muito mais do que para pegar o segundo ônibus, eu descia para ver ela.
Ela me esperava ali, porque de lá íamos juntos. Era metade do caminho. A primeira metade era eu. Eu que saia do trabalho e entrava no primeiro ônibus. Eu que chegava na estação. Eu que subia as escadas rolantes e andava até próximo aos bancos, que era o lugar onde ela sempre estava.
Então eu olhava.
Eu amava ela, ou o modo como a luz, entrando pela janela alta da estação, incidia nela?
Eu amava ela. Porque era ela que me fazia sensível à luz.
A segunda metade era fácil. Porque a segunda metade era nós. Tanto fazia se era o segundo ônibus. Tanto fazia se era para casa.

Pensando agora, não sei como tudo se quebrou. Como se fosse um dos pratos escorregando das minhas mãos ensaboadas e partindo no chão. Pancada. Barulho. E cacos. Tentar olhar os cacos e enxergar o prato, seria tão tolo quanto tentar olhar para ela e nos enxergar. O prato virou memória. Nós viramos memória.
Talvez não haja tanto mistério. Talvez os elementos estivessem ali, esperando a combinação derradeira, como pratos/chão/minhas mãos ensaboadas. Ou fotógrafo-frustrado-lavador de pratos/arquiteta disposta/arquiteto bem sucedido.
Não sei se ela me deixou por ele, por ela ou por mim. Mas é certo que houve quebra. Pancada. E barulho.
Lembro-me disso tudo. Tremi. O afogamento. O vômito. Os gritos ocos, os socos no chão e nas paredes, as horas e eu ali imóvel como um saco. O planos de matar com as minhas mãos e os apertões fundos na própria carne. A vontade de  cacos.

Depois veio a distância. E o tempo. E muito se borrou na memória.
Depois as memórias foram voltando e se reerguendo de modo muito próprio, desrespeitando cronologia e razão.
E voltei a respirar. E a amar algumas dessas memórias, sem me ressentir por isso. Mas não foi suficiente. Porque a elas não bastou me testemunharem que foi possível. Elas me sussurravam, sadicamente, que, se foi possível, é possível.
Então dou o segundo passo. Escuto o sussurro. E assim, sem querer, me vingo dela. Porque quando penso que é possível, não penso que é possível com ela. Só que é possível. Vingança mais eficaz do que as que fantasiei nos momentos de violência. Agulhas debaixo de unhas. Alfinetes na genitália. Não adiantava. Se dói no torturado, dói no torturador. O fotógrafo lavador de pratos traído pela arquiteta. Que tomou comprimidos amarelos, e brancos, e sem cor, para matar a vontade de matar. E comprimidos grandes para suportar a dor das torturas que de fato perpetrou. Eu bati. Na cara, nas costas, nas pernas. E por pouco a mão não foi fechada. Eu apertei o pescoço e a levantei. Um frango para o abate. Olha a merda que VOCÊ foi fazer, sua puta. Doía em mim, ia doer nela. Não adiantava. Se dói no torturado, dói no torturador. Círculo infinito. Infernal. Sempre mais dor. E exaurimento. E nunca se apagava a primeira quebra. O estrondo. Quando eu soube dele. E a roda voltava sempre a girar.

Não.
Não deve ser mais sobre vingança. Não deve ser mais sobre ela. Não é mais sobre isso. Deve ser sobre a possibilidade. Sobre permitir mais uma vez a possibilidade de se dar o alinhamento, a combinação improvável e quase impossível. Aquela quando alguém me toca no fundo tão fundo que parece o avesso, e me deixa tocar onde minhas mãos carcomidas pelo sabão mal podem alcançar.

Desligo o gravador. Olho o quarto vazio. Respiro fundo. Perco o receio. Crio coragem